Memória ferida

E quem poderia adivinhar que, na bagunça do primeiro dia de aulas na faculdade de Ciências Sociais, no distante ano de 1996, na fila para entregar não sei qual documento, eu conheceria o cara que hoje é o padrinho do Miguel? E que, também nos corredores do belíssimo prédio histórico do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, no Largo de São Francisco, no coração do Rio de Janeiro, cenário de passagens de contos machadianos, e por caminhos tortos, eu também conheceria a mãe do filho, minha amiga e parceira, o amor da minha vida?

A graduação em Ciências Sociais moldou-me intelectualmente, penso o que penso, hoje, por “culpa” daqueles quatro anos de intensas leituras e interpretações da vida em sociedade. Por sua “culpa”, conheci Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda. Comecei a tentar a entender o Brasil lendo “Carnavais, malandros e heróis” do Roberto Da Matta, e a relativizar minhas verdades juvenis com um texto despretensioso chamado “Os sonacirema”, povo estranho que fui saber, horas mais tarde, éramos nós mesmos (faça o teste, leia de trás para frente, e voilà!).

Ali, tive minha primeira namorada. Ali, tomei meu primeiro porre. Ali, participei pela primeira vez de uma greve estudantil na luta por uma educação pública gratuita e de qualidade. Fiz parte do time de futebol que era o saco de pancadas dos adversários da Ciência Política e da História, mas a gente se divertia porque tudo era motivo para a confraternização alcoólica pós-pelada.

Hoje, passei pelo Largo de São Francisco e senti uma espécie de punhalada na alma, senti que a memória afetiva cultivada ao longo dos últimos vinte anos estava sendo vilipendiada, ferida de morte. O prédio está gradeado e a população de rua decidiu instalar-se com lonas negras, em frente à escadaria de acesso. As paredes estão imundas, pichadas, descuidadas, faltam vidros nas janelas. Contraste absurdo com a imponência e a beleza do Real Gabinete Português de Leitura, logo ali ao lado, na Rua Luis de Camões.


Vivemos uma época em que o diálogo e a reflexão crítica da realidade andam em baixa. Talvez a degradação, o descuido e o desprezo com que, aparentemente – literalmente- o IFCS é tratado não sejam mera coincidência. 

Uma lástima.



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